Jul 19, 2009

TELEANÁLISE



ONDE OS fracos tem vez

Malu Fontes



Numa mesma semana a televisão contou com uma pauta longa de notícias relevantes. Michael Jackson, Farah Fawcett e Pina Bausch morreram, cerca de 150 passageiros sumiram no Oceano Índico na queda do segundo Airbus no mar em um mês, a lama em torno do senado e de José Sarney subiu a níveis de transbordamento, fezes e dejetos de todo o tipo (fraldas usadas, sanitários químicos usados e compactados) foram importados pelo Brasil da Inglaterra via porto de Rio Grande (RS), o pregão eletrônico viva voz das bolsas de valores no Brasil deixaram de existir para sempre, um grupo de militares fossilizados ressuscitou o golpe de estado em Honduras e a gripe suína provocou a primeira morte no Brasil, onde o número de contaminados já aproxima-se de 700. É muita informação importante para período tão curto.



No entanto, para o telespectador de Salvador, é pouco provável que quaisquer destas informações veiculadas ostensivamente em todas as emissoras abertas e fechadas de TV tenham tido força suficiente para ofuscar a contundência do ato e da entrevista do professor de Educação Física Adalberto França de Araújo Filho, 39 anos, preso na última segunda feira por torturar, esfaquear, atirar e queimar a mulher e mãe de sua filha na quinta-feira da semana anterior. Não se trata de um homem miserável, desses analfabetos, famélicos, a quem o senso comum atribui a barbárie doméstica praticamente como um sintoma natural da condição desumana de onde emergiram desde que estão no mundo. Trata-se de um homem desses aparentemente comuns, desses que podem ser vistos em delicatessens de rico comprando comes e bebes para compartilhar com os amigos na casa confortável de classe média onde vive com mulher e filhos.



PÊNIS E FACAS - O tempo passa, o tempo voa e o machismo continua, sim, numa boa. Para boa parte dos homens, sobretudo os latinos, o pênis ainda é tido como uma arma contra a mulher. Uma arma que a qualquer momento pode se estender prolongando-se sob a forma de facas, revólveres, murros, gritos, humilhações, autoritarismo, imposição de controle, torturas morais e físicas e assassinato. Além disso, a autoridade e a hierarquia doméstica depositadas exclusivamente sobre o homem ainda é um valor tão comum entre as boas famílias quanto o almoço de domingo. Muita coisa mudou, mas a possessividade bestial masculina ainda é tão entranhada que Adalberto dá-se ao direito de alegar razões para o que fez e se permite atribuir a si o poder de perdão. Diz, sem que lhe perguntem algo tão nonsense, que, sim, é capaz de perdoar a mulher, que sobreviveu, embora com toda o tipo de seqüelas: dedos cortados, fraturas múltiplas, incluindo mãos e os dois pulsos, hematomas incontáveis, tiros, cortes e queimaduras, inclusive com pontas de cigarros nos seios.



O perdão seria por ela o trair. A certeza da traição veio da confissão arrancada em 4 horas de violência e tortura. Houve de tudo. Cortes de faca no rosto, na vagina e no ânus, ingestão de fezes dele sob a mira de um revólver carregado (e disparado várias vezes), jatos de leite fervente sobre o corpo, várias queimaduras de cigarro e detalhes que chocaram os médicos que a atenderam. O agressor argumenta de forma assertiva que não é o único culpado pelo que aconteceu, pois ela sabia que ele não admite traição. Imagina se os machos sentados sobre seus sacos inflados de poder outorgado por séculos são capazes de admitir que suas mulheres lhes devolvam aquilo que é praticado por eles com tanta naturalidade. Defende-se dizendo que não a torturou. O que fez foi ter usado, por perder a cabeça, meios indevidos para levá-la a falar a verdade. Em seu raciocínio de macho castrado pela impossibilidade de se imaginar preterido, tudo o que fez foi por amor. Sim, no Século XXI ainda há imbecis graduados capazes de usar um argumento tão rastaqüera e vencido. Se há universo onde os fracos morais ainda tem vez, é na violência doméstica. A punição ainda está longe de alcançá-los na medida em que merecem.



JESUS CRISTO - As imagens de TV com as declarações de Adalberto são um peça a ser adotada nacionalmente nos anais do machismo brasileiro. E não vale o argumento de surto ou doença. Uma coisa é patologia, outra é mau caratismo e violência masculina, pois, como se não bastasse o argumento amoroso, há outro: surto psicótico. Se há algo difícil de ser explicado pelos pesquisadores dos descaminhos da mente humana, é o surto premeditado. Na véspera, o agressor tratou, segundo foi divulgado, de providenciar uma receita médica de um medicamento de uso controlado, tarja preta. Na noite do crime, mandou a babá e a filha pequena para a casa de parentes. As intenções do surto, portanto, chegaram bem antes da manifestação.



Nem Nélson Rodrigues colocaria algumas das frases de Adalberto na boca dos maiores de seus cafajestes de ficção. Sobre a irrefutabilidade da traição confessada pela companheira, não titubeia: ninguém mentiria, segundo ele, diante de um revólver carregado. Quanto equívoco: por muito menos e, sob a promessa de que, em caso de confissão, nada aconteceria, como ele fez, qualquer fortão revelaria, em segundos, ser o mentor e executor da crucificação de Jesus Cristo. Para as mulheres, diante do nojo experimentado com as falas de um impotente moral se fazendo passar por limpador da própria honra, ouvir na TV que a Inglaterra está literalmente exportando merda para o Brasil, soa como uma notícia quase banal, afinal o país já produz tanta que uns contâineres a mais ou a menos...



Malu Fontes é jornalista, doutora em Comunicação e Cultura e professora da Facom-UFBA. Texto publicado em 05 de julho de 2009. maluzes@gmail.com


Acredito que este é o tipo de texto que deveria ser postado em todos os blogs...Uma leitura essencial que tem como consequência uma reflexão obrigatória.

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